By John Stott, sem comentários...
O PRIMEIRO FRUTO DO ESPÍRITO[1]
Neste capítulo eu o convido a refletir sobre um texto bíblico que se tornou muito significativo para mim. Todos os dias, já faz talvez uns vinte anos, eu o cito para mim mesmo em minhas devoções matinais e oro para que ele se cumpra em minha vida. Quando me perguntam qual é o meu texto predileto, eu geralmente cito este. Parece-me que ele contém verdades que são de extrema importância para todo o povo de Deus. Aqui está ele:
Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.[2]
Destes dois versículos podemos extrair cinco afirmações acerca do amor.
Amor, alegria e paz
A primeira verdade é que o amor é a suprema graça cristã: "o fruto do Espírito é amor". Na verdade Paulo menciona um conjunto de nove qualidades que, juntas, ele chama de "fruto" do Espírito; o amor, porém, tem o lugar de honra. Hoje em dia nós ouvimos falar muito acerca do Espírito Santo (ele já não é mais a pessoa "negligenciada" da trindade) e muita gente diz ter experimentado manifestações espetaculares do seu poder. No entanto, o primeiro fruto da sua presença em nós não é o poder, mas o amor.
E salutar perguntarmos a nós mesmos: qual é a principal marca distintiva de um cristão? Qual é o símbolo que comprova a autenticidade dos filhos de Deus? A resposta varia de pessoa para pessoa.
Uns dizem que o que distingue o cristão verdadeiro é a verdade, a ortodoxia, a convicção certa, a fidelidade às doutrinas da Escritura, aos Credos, e às Confissões da Reforma. E está certo. A verdade é sagrada. A sã doutrina é vital para a saúde da igreja. Nós somos exortados a "combater o bom combate da fé",[3] a "guardar o depósito" da religião revelada,[4] a "permanecer firmes e guardar as tradições que nos foram ensinadas",[5] e a "batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos".[6] Nunca devemos esquecer estas solenes advertências. Entretanto, "Ainda que... conheça todos os mistérios e toda a ciência... se não tiver amor, nada serei".[7] Além disso, "o saber ensoberbece, mas o amor edifica".[8] Portanto, o amor é maior do que o conhecimento.
Outros insistem em dizer que o que distingue um discípulo de verdade é a/e. "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei."[9] Como disse Lutero, a justificação pela fé é "o principal artigo de toda a doutrina cristã" que "produz cristãos de verdade".[10] E Cranmer acrescentou a contrapartida negativa: "Esta (se. doutrina), quem quer que a negue não pode ser considerado um verdadeiro cristão".[11] Ou, citando uma declaração evangélica moderna, a justificação pela fé é "o coração e o cerne, o paradigma e a essência de toda a economia da graça salvadora de Deus".[12] Eu concordo. Sola fide, "somente pela fé", que foi a bandeira da Reforma, deve ser também a nossa bandeira. Apesar disso, "ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei".[13] O grande apóstolo da fé deixa claro que o amor é maior do que a fé.
Um terceiro grupo enfatiza que a marca distintiva do cristão é a experiência religiosa — geralmente uma espécie de experiência viva e específica que eles acreditam deva se reproduzir em todo mundo. E este grupo também tem razão — até certo ponto. E essencial ter um relacionamento íntimo e pessoal com Deus através de Jesus Cristo. O testemunho do Espírito em nós é real. Na verdade existe essa "alegria indizível e cheia de glória",[14] e, comparadas à "sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor", todas as outras coisas são de fato uma perda.[15] No entanto, "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos" e "ainda que eu tenha o dom de profetizar" (reivindicando, assim, uma comunicação direta com Deus), "se não tiver amor, nada serei".[16] Assim, o amor é maior do que a experiência.
Um quarto e último grupo — por sinal, gente de natureza muito prática — enfatiza o serviço, especialmente o serviço aos pobres, como sendo a marca distintiva do povo de Deus. Mais uma vez, está certíssimo! Sem boas obras, a fé é morta. Se o próprio Jesus colocou-se ao lado dos pobres, seus discípulos também devem fazê-lo. Se vemos pessoas em necessidade e temos condições de ajudá-las, mas não nos apiedamos delas, como é que podemos dizer que o amor de Deus está em nós?[17] Graças a Deus pela ênfase cada vez maior na sua "opção preferencial" ou interesse prioritário pelos pobres. Contudo, "ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres, e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado" (quem sabe em um gesto heróico de sacrifício), "se não tiver amor, nada disso me aproveitará".[18] Assim, o amor é maior do que o serviço.
Resumindo, o conhecimento é vital, a fé é indispensável, a experiência religiosa é necessária e o serviço é essencial; Paulo, contudo, dá precedência ao amor. O amor é a coisa mais importante do mundo, pois "Deus é amor"[19] no mais íntimo do seu ser. Pai, Filho e Espirito estão eternamente unidos um ao outro em amor que se doa pelo outro. Portanto, aquele que é amor e que derramou o seu amor sobre nós convida-nos a devolver esse amor, amando a ele e também uns aos outros. "Nós amamos porque ele nos amou primeiro."[20] O amor é a marca principal, o selo de excelência, o símbolo supremo que distingue o povo de Deus. Nada pode desarraigá-lo nem substituí-lo. O amor está acima de tudo.
Em segundo lugar, o amor traz alegria e paz, pois "o fruto do Espírito é amor, alegria, paz". A sequência, aqui, é deveras significativa.
Os seres humanos sempre viveram em busca de alegria e paz, se bem que geralmente se empregue a palavra "felicidade", mais secular. Thomas Jefferson, antes de tornar-se o terceiro Presidente dos Estados Unidos, tinha tanta convicção de que "a busca da felicidade" era um direito humano inalienável, que ele a incluiu na Declaração da Independência, chamando-a de "uma verdade auto-evidente".
Os cristãos, porém, sentem-se na obrigação de acrescentar que quem procura a felicidade nunca a encontrará. A alegria e a paz são bênçãos extremamente ilusórias. A felicidade é um fogo-fátuo, um fantasma. Mesmo quando nós estendemos a mão para agarrá-la, ela se desvanece no ar. Acontece que a alegria e a paz não são alvos que se possam perseguir; elas são subprodutos do amor. Elas nos são concedidas por Deus, não quando nós as buscamos, mas quando buscamos a ele e aos outros em amor.
Urge que testifiquemos dessa verdade ao mundo contemporâneo, em que a "auto-realização" é o desejo supremo e o "movimento do potencial humano" continua a conquistar espaço. Em seu perspicaz livro A Psicologia como Religião,[21] cujo subtítulo é O Culto à Auto-adoração, Dr. Paul Vitz, da Universidade de Nova York, começa analisando os quatro principais "teóricos do ego" da sua década: Erich Fromm (que argumentava que o vício é indiferente ao ego das pessoas e que a virtude consiste na auto-afirmação), Carl Rogers (cuja terapia concentrada no cliente objetivava ajudá-lo a tornar-se uma pessoa autónoma e integrada através da "auto-estima" incondicional), Abraham Maslow (que enfatizava a "auto-realização" criativa) e Rollo May (que, influenciado pelo existencialismo, enfatizava a decisão e o comprometimento como o caminho para ser alguém). Estes quatro escritores, que atingiram o seu ápice nos anos setenta, eram todos humanistas seculares confessos. Eles acreditavam nos seres humanos, não em Deus. Foram muito divulgados e sua ênfase básica na auto-estima e na auto-realização parece ter-se infiltrado em quase todos os segmentos da sociedade. Dr. David Wells comenta que "em meados da década de oitenta, um total de 87,5% de tudo o que se publicou nos Estados Unidos estava a serviço dos interesses e apetites do movimento do eu".[22]
Existe, na verdade, uma auto-afirmação que é certa e saudável e que se constitui em equilíbrio para a abnegação para a qual Jesus conclamou seus discípulos. No entanto, ela não é a afirmação desqualificada e acrítica do eu, pois é fortemente caracterizada pelo reconhecimento de nossa própria pecaminosidade. Os cristãos só podem afirmar aqueles aspectos do eu que derivam do fato de termos sido criados à imagem de Deus (por exemplo, nossa racionalidade, responsabilidade moral e capacidade para amar); ao mesmo tempo, eles negam (ou seja, rejeitam e repudiam) todo e qualquer aspecto do eu que derive da queda e da nossa própria condição de seres caídos (por exemplo, nosso egoísmo, avareza, malícia, hipocrisia e orgulho). Estas formas cristãs de auto-afirmação e abnegação estão muito longe de ser expressões de uma preocupação com nós mesmos, e muito menos um endeusamento próprio. Pelo contrário, o seu alvo não é o eu, mas sim, Deus. Elas fazem parte da nossa adoração a Deus como nosso Criador e Juiz.
Certos autores cristãos, porém, tentam argumentar que o próprio cristianismo consiste de auto-estima; que nós necessitamos deixar de preocupar-nos com pecado, culpa, juízo e expiação; que, ao invés disso, deveríamos apresentar a salvação como a descoberta do eu; e que é isso que Jesus queria dizer quando endossou o segundo mandamento, indicando com isso que deveríamos amar a nós mesmos assim como amamos o nosso próximo. Mas na realidade não é bem assim. Amor próprio, na Escritura, é sinônimo de pecado e não o caminho para a liberdade. Além disso, amor-agape significa o sacrifício de alguém em favor de outros. Por sua própria natureza, ele não pode ser voltado para si mesmo. Como podemos sacrificar a nós mesmos a fim de servir a nós mesmos? E impossível. A própria idéia não tem o mínimo sentido. O caminho de Jesus é o oposto, como já vimos no capítulo 2, sobre "A Verdadeira Liberdade". Ele nos ensinou o grande paradoxo de que só quando perdemos a nós mesmos é que nos encontramos, só quando morremos para nós mesmos é que aprendemos a viver e só servindo aos outros é que ficamos livres. Ou, voltando a Paulo em Gálatas, somente quando amamos é que vêm a alegria e a paz. A busca autoconsciente da felicidade acaba sempre em fracasso. Mas quando nos esquecemos de nós mesmos em serviço de amor abnegado, então a alegria e a paz inundam a nossa vida em forma de bênçãos abundantes e inesperadas.
Amor em ação
Em terceiro lugar, o amor se manifesta em ação. Se o amor é o primeiro fruto do Espírito, seguindo-se a alegria e a paz, a seguir vêm "paciência, benignidade, bondade". Amor não é só romance, e muito menos sensualidade. Tampouco é puro sentimento ou emoção. Pode parecer abstrato, mas o amor gera atitudes positivas e ações concretas, a saber, "paciência", "benignidade" e "bondade". Creio que foi Dostoievsky quem escreveu que "amor em ação é muito mais terrível do que amor em sonhos". Afinal, o amor está sempre buscando o verdadeiro bem-estar dos outros, qualquer que seja o custo pessoal.
"Paciência"(makrothymia) é uma qualidade negativa. Geralmente se traduz como "longanimidade", pois isso denota paciência com as pessoas, mais do que com as circunstâncias. Implica em suportar com paciência quem é exigente conosco ou quem nos provoca. E não esquecer a "paciência infinita" de Cristo para conosco.[23]
"Benignidade" (chrestotes) e "bondade" (agathosyne) são ambas qualidades positivas. A primeira é benevolência, generosidade de pensamento, desejar o bem para outras pessoas, enquanto que a segunda é beneficência, generosidade expressa em atos, fazer de fato o bem que desejamos para essas pessoas.
Estas três graças cristãs constituem-se, portanto, em uma sequência progressiva. A paciência suporta a malícia dos outros e recusa-se a retaliar. A benignidade transforma tolerância em benevolência, não desejando o mal aos outros, mas, sim, desejando-lhes o bem. E a bondade transforma o desejo em fato, tomando a iniciativa de servir as pessoas em ação.
Todas as três qualidades são características e manifestações do amor. Pois, como escreve o apóstolo em outro lugar, "o amor é paciente (makrothymei), o amor é benigno (chresteuetai)",[24] e nós devemos "servir uns aos outros em amor".[25] De pouco vale fazermos nobres protestos de amor pela raça humana; precisamos é nos envolver com pessoas reais, em situações reais. E aí que se testará de fato a "paciência, benignidade e bondade" do amor.
Em quarto lugar, o amor é equilibrado pelo domínio próprio, pois "o fruto do Espírito é... fidelidade, mansidão, domínio próprio". Estas três qualidades parecem ser diferentes nuances da arte de controlar a nós mesmos. "Fidelidade" é confiabilidade ou integridade em áreas tais como guardar nossas promessas e cumprir o que nos foi confiado. "Mansidão" vem de "prautes", que geralmente se traduz como mansidão ou humildade. Mas não é um tipo de mansidão complacente, sem força moral, sem princípios. Na verdade, significa ser gentil, humilde e atencioso em relação a outras pessoas; mas para tanto nós precisamos aprender a domesticar as nossas forças e fortalecer as nossas energias. A terceira palavra, "domínio próprio", é egkrateia, "que expressa o poder ou senhorio que a pessoa tem, seja sobre si mesma, seja sobre alguma coisa".[26] Inclui disciplinar os nossos instintos, controlar o nosso temperamento e nossa língua e refrear as nossas paixões. Mas por que eu escrevi acima que o amor é "equilibrado" pelo domínio próprio? Porque o amor é abnegado, e abnegação e domínio próprio complementam-se mutuamente. Afinal, como podemos doar-nos em altruísmo e abnegação se não aprendemos a nos controlar? O nosso eu, antes de ser oferecido em serviço de outros, precisa ser dominado. Portanto, é profundamente significativo que o fruto do Espírito, em suas nove manifestações, comece com amor (abnegação) e termine com domínio próprio.
O amor é o fruto do Espírito
A quinta verdade que surge deste grande texto é que o amor sobre o qual vimos pensando (supremo, fonte de alegria e paz, manifesto em ação e controlado pelo domínio próprio) é o fruto do Espírito, isto é, a consequência natural da obra sobrenatural do Espírito Santo em nós.
Nesse contexto Paulo está fazendo um contraste entre "a carne" e "o Espírito", entre "as obras da carne" e "o fruto do Espírito". Agora nós precisamos fazer uma pausa para estabelecer algumas definições. Ao falar em "carne", ele não está se referindo ao tecido de pele e músculos que cobre o nosso esqueleto ósseo, nem ao corpo humano (um equívoco que as pessoas fazem quando falam de glutonaria e imoralidade sexual como "pecados da carne"), mas, sim, à nossa natureza herdada, caída e corrupta, com sua propensão para o mal, seus desejos corruptos e suas exigências egoístas.
Ao falar em "Espírito", Paulo não está se referindo ao fôlego que anima o nosso corpo, nem ao lado espiritual dos seres humanos em contraste com o material, mas ao próprio Espírito Santo, que se integra a nossa personalidade quando nos arrependemos e confiamos em Jesus, e cuja presença em nós é a marca da identidade cristã[27] e o segredo da santidade cristã.
Eis aqui, pois, os dois protagonistas da luta descrita por Paulo. De um lado está "a carne", nossa natureza caída c egocêntrica, e do outro lado está "o Espírito", o Espírito de Deus que habita pessoalmente em nós. Paulo nos diz três verdades acerca do conflito entre estas duas forças.
Primeiro, os desejos da carne e do Espírito são desejos ativos. "Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si." Ou (BLH): "Porque o que a nossa natureza humana deseja é contra o que o Espírito quer, e o que o Espírito quer é contra o que a natureza humana deseja. Os dois são inimigos".[28] Portanto, tanto a carne como o Espírito têm desejos, os quais são vivos, ativos, fortes e vigorosos. A razão para se ressaltar isso é que, através da história da igreja, grupos perfeccionistas têm ensinado que depois do novo nascimento a nossa natureza caída fica inerte e inativa, ou até mesmo morta. Mas não é isso o que diz a Escritura. O mandamento para que não satisfaçamos os desejos da carne[29] e a declaração de que "o que o Espírito quer é contra o que a natureza humana deseja"[30] não teriam qualquer sentido, nenhum dos dois, se a nossa natureza caída já não tivesse mais desejos. Não, a vida cristã é cheia de incessantes conflitos com o mundo, com a carne e com o diabo.
Em segundo lugar, os desejos da carne e os do Espírito são desejos opostos entre si. Existe entre eles um violento antagonismo. "A carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro."[31] Como diz J. B. Lightfoot em seu comentário aos Gálatas, "entre o Espírito e a carne não há afinidade alguma; existe um conflito mortal e interminável".[32]
Além disso, os desejos opostos da carne e do espírito manifestam-se no contraste entre "as obras da carne"[33] e o "fruto do Espírito".[34] Os primeiros são desagradáveis e Paulo menciona quinze deles. Eles parecem encaixar-se em quatro categorias: pecados sexuais (imoralidade e licenciosidade), pecados religiosos (idolatria e feitiçaria, sendo esta última o intento secreto de roubar o poder divino ou demoníaco através da mágica), pecados sociais (oito deles, inclusive a malícia, os ciúmes, a ira, as discórdias e a ambição egoísta) e pecados pessoais (bebedices e orgias). E uma lista repugnante de atividades através das quais as pessoas se declaram contra Deus e contra os outros.
As nove manifestações do fruto do Espírito,[35] que nós já consideramos, apresentam um belo contraste. De fato, seria difícil imaginar um contraste maior. Aqui se encontra piedade ao invés de impiedade, alegria e paz autênticas em lugar de busca de prazer pecaminoso, benignidade e bondade ao invés de malícia e inveja, e domínio próprio em vez de auto-indulgência.
Terceiro, Paulo enfatiza que os desejos da carne e os do Espírito são desejos controláveis. É possível, escreve ele, o Espírito ganhar ascendência sobre a carne e subjugá-la, o amor triunfar sobre o egoísmo e a bondade vencer o mal. Como? O segredo está em assumirmos a atitude correta, tanto para com a carne como para com o Espírito.
Nossa atitude para com a nossa natureza caída deveria ser de implacável repúdio, pois "os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências."[36] Isto é, nós pegamos essa coisa má, repugnante e enganosa chamada "carne" e a pregamos na cruz. Este foi o nosso arrependimento inicial. A crucificação é um símbolo dramático para a nossa incondicional rejeição de todo mal conhecido. A crucificação não produz uma morte rápida ou fácil; ela é uma execução que se caracteriza por um sofrimento extremamente demorado. Contudo, é decisiva; não há como escapar dela.
Nossa atitude em relação ao Espírito, por sua vez, deve ser de entrega incondicional. Paulo usa diversas expressões para isso: nós devemos "viver no Espírito", ser "guiados pelo Espírito" e "andar no Espírito".[37] Ou seja, temos de permitir que ele exerça sobre nós sua legítima soberania, e então seguir suas justas orientações.
Assim, ambos os processos — repudiar a carne e render-se ao Espírito — precisam repetir-se diariamente, por mais decisivo que tenha sido originalmente o nosso repúdio e mais completa a nossa rendição. Em palavras de Jesus, temos que "tomar a nossa cruz dia a dia" e segui-lo.[38] Precisamos também ser "cheios [enchidos] do Espírito", à medida que lhe confiamos diariamente a nossa V personalidade. Tanto o nosso repúdio como a nossa entrega são igualmente manifestos em hábitos de vida disciplinados. Quem "semeia para o Espírito"[39] é que colhe o fruto do Espírito. E "semear para o Espírito" significa cultivar as coisas do Espírito- por exemplo, empregando com sabedoria o Dia do Senhor, sendo disciplinados na nossa vida de oração e leitura diária da Bíblia, participando regularmente dos cultos e da Ceia do Senhor, desenvolvendo amizades cristãs e envolvendo-nos no serviço cristão. Há, na maneira de Deus lidar conosco, tanto no campo material como no campo moral, um princípio que é inflexível: nós colhemos aquilo que semeamos. A lei é imutável. E nunca será diferente, pois "de Deus não se zomba".[40] Portanto, não fiquemos surpresos se não colhermos o fruto do Espírito, quando o tempo todo estamos semeando para a carne. Ou porventura pensamos que poderíamos trapacear ou enganar a Deus?
Mudando a metáfora, lembro-me de ter lido, anos atrás, sobre alguém que, visitando as montanhas ao sul da Califórnia, encontrou um velho camponês cujos dois cães viviam sempre brigando. O visitante perguntou-lhe qual dos cães geralmente ganhava. O camponês mascou seu tabaco em silêncio durante alguns instantes e então respondeu: "Aquele que eu dou mais comida." Assim é conosco: a nossa nova natureza só ganhará a vitória sobre a velha natureza se nós alimentarmos a nova e deixarmos a outra morrer de fome.
Só existe uma pessoa, em toda a história do mundo, em quem o fruto do Espírito conseguiu amadurecer até atingir a perfeição. Essa pessoa é Jesus de Nazaré. De fato, o fruto do Espírito descrito por Paulo pode ser considerado um retrato de Jesus Cristo, pois ele amou como ninguém jamais amou, a ponto de entregar a sua vida pelos seus inimigos. Ele falou sobre a "minha alegria" e também sobre a "minha paz".[41] Foi extremamente paciente com seus obtusos apóstolos. Foi sempre bondoso e cheio de boas obras. Além disso, foi imutavelmente confiável e sempre gentil - de fato, ele era "manso e humilde de coração".[42] E tinha tanto domínio próprio que "quando ultrajado, não revidava com ultraje".[43]
Certa vez o Dr. Kenneth Moynagh, que trabalhou muitos anos como médico missionário em Matana, Burundi, resumiu da seguinte forma o fruto do Espírito, com sua ênfase no amor:
Alegria é amor exultante e a paz é amor que descansa; Paciência é amor que suporta todo teste e qualquer provação. Benignidade, amor que se rende, mas que sabe reagir ao pecado E bondade é amor em ação, evidência de que há Cristo em mim. Fé são olhos de amor que se abrem para o Cristo vivente enxergar; Mansidão é amor que não luta, mas se humilha diante da cruz. Temperança é amor que resiste, mas se rende ao controle de Cristo, Porque Cristo é amor em pessoa e amor é ter Cristo em meu ser.
Além disso, se o fruto do Espírito é ser semelhante a Cristo, ser semelhante a Cristo é o propósito de Deus para todo o seu povo. E seu propósito eterno, pois aqueles que Deus "de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho".[44] Depois, é seu propósito histórico, pois nós "somos transformados de glória em glória, na sua própria imagem".[45] E, terceiro, é seu propósito escatológico. Pois, mesmo que "ainda não se manifestou o que havemos de ser", nós "sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é."[46]
A única maneira de compreender os desapontamentos e frustrações da vida, a solidão, o sofrimento e a dor, é vê-los como parte da disciplina do nosso amoroso Pai em seu propósito de fazer-nos como Cristo.[47]
Às vezes me perguntam — por exemplo, em uma entrevista de jornal, rádio ou televisão — se, em minha idade, ainda me resta alguma ambição. Agora eu sempre respondo: "Sim, a minha suprema ambição (que, espero, será a mesma até eu morrer) é tornar-me um pouquinho mais igual a Cristo."
[1] Capítulo 9 do livro: Ouça o Espírito, Ouça o Mundo; Ed ABU; Stott, John
[2] Gl 5.22-23
[3] 1 Tm 6.12
[5] 2 Ts 2.15
[6] Jd 3
[7] 1 Co 13.2
[8] 1 Co 8.1
[9] Rm 3.28
[11] Do "Sermão da Salvação", no Primeiro Livro das Homilias (1547)
[12] R. T. Beckwith, G. E. Duffield e J. I. Packer, Across the Divide (Lyttleton Press, 1977), p. 58
[13] l Co 13.2
[14] 1 Pe 1.8
[15] Fp 3.8
[16] 1 Co 13.1-2
[17] 1 Jo 3.17
[18] 1 Co 13.3
[19] 1 Jo 4.8, 16
[20] 1 Jo 4.19
[21] Eerdmans, 1977
[22] David Wells, No Place for Truth (Eerdmans, 1993)
[23] 1 Tm 1.16
[24] 1 Co 13.4
[25] G1 5.13
[26] De Walter Gundmann, em um artigo sobre egkrateia em TDNT
[27] Rm 8.9
[28] G1 5.17
[29] G1 5.16
[30] G1 5.17
[31] G1 5.17 (NVI)
[32] J. B. Lightfoot, Galatians (1865), p. 209
[33] G1 5.19-21
[34] G1 5.22-23
[35] G1 5.22-23
[36] G1 5.24
[37] Gl 5.16, 18, 25
[38] Lc 9.23
[39] G1 6.8
[42] Mt 11.29
[43] 1 Pe 2.23
[44] Rm 8.29
[45] 2 Co 3.18
[46] 1 Jo 3.2
[47] P. ex. Hb 12.4-11
tenho apreciado muito este conteúdo, desejo que DEUS continue iluminando sua vida para minuciar o desejo de todos que querem ter conhecimento com prática
ResponderExcluircorreção: onde se ler minuciado por municiado, me desculpe.
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